quarta-feira, 12 de novembro de 2014

OS TRÊS TIPOS DE SANTIDADE



Pe. Garrigou-Lagrange, O.P.,
L’éternelle Vie et la Profondeur de l’Ame

A doutrina revelada sobre a morte, sobre o juízo particular, sobre o inferno, sobre o purgatório e o céu, leva-nos a pressentir o que é a outra vida e manifesta-nos a grandeza da alma humana que só Deus visto face a face pode irresistivelmente atrair e encher. O que nos faz tender para o céu, nosso destino, é a graça santificante, germe de vida eterna, e as virtudes infusas que dela derivam, sobretudo a fé, a esperança e a caridade acompanhadas dos sete dons do Espírito Santo.

Note-se, que estas três grandes virtudes teologais são hoje, por vezes, completamente desfiguradas. A fé em Deus, a esperança em Deus e o amor a Deus e às almas por ele, foram substituídas em muitos meios modernos pela fé e esperança na humanidade, pelo amor teórico da humanidade. Nesses meios, a fraseologia ocupou o lugar da doutrina sagrada. A arte de fazer frases substituiu a doutrina revelada acerca de Deus e da alma. Quando é assim, a falsidade não tem remédio.

Em certas lojas maçônicas lê-se nas paredes: “Fides, spes, caritas”. Chesterton afirmou sobre este ponto: “Grandes ideias que se tornaram loucas”.

Propriamente falando, não foram as ideias que se tornaram loucas, mas sim as pessoas, em consequência de perturbações fisiológicas e psíquicas, e, quanto mais elevada era a inteligência destas pessoas, mais esta loucura aflige e toma proporções que correspondem às das suas faculdades e da sua cultura. É por isso que a loucura religiosa e a mais difícil de curar, porque não se pode apelar para um motivo mais elevado; a inteligência perde-se no que tem de mais nobre. Nessa altura ela engana-se habitualmente, não quanto ao valor dos objetos mais ordinários, mas quanto ao das ideias mais elevadas, como a ideia de Deus, a das suas perfeições infinitas, a sua justiça, a sua misericórdia.

“As grandes ideias tornadas loucas” são as ideias religiosas que perderam significado superior e vieram a desarticular-se e a desequilibrar-se de todo. É o que acontece quando se substitui a fé em Deus, que não pode enganar-se nem nos enganar, pela fé na humanidade, apesar de todas as suas aberrações. E assim como a verdadeira fé, esclarecida pelos dons do Espírito Santo, pelos dons da inteligência e da sabedoria, constitui o principio da contemplação mística, a fé degenerada e desarticulada torna-se o principio de uma falsa mística, aprovada na paixão pelo progresso da humanidade, como se este progresso, pudesse ir até o infinito, como se fosse o próprio Deus que convertesse a nós. Quando alguém perguntava a Renan: “Deus existe?” ele respondia: “Ainda não”, sem se aperceber bem de era um blasfemo.

A antiguidade clássica não conheceu um tão profundo desequilíbrio. Depois dela, veio o Cristianismo, a elevação sobrenatural do Evangelho, e, quando alguém se separa dele, a queda é tanto mais rápida quanto se cai de mais alto.

A descida começou com Lutero, pela negação do sacrifício da Missa, do valor da absolvição sacramental, e, portanto, da confissão, pela negação, também, da necessidade de cumprir os mandamentos de Deus para obter a salvação. A queda acelerou-se depois, com os enciclopedistas e filósofos do século XVIII, com o “cristianismo corrompido” de Jean Jacques Rousseau, que subtraiu ao Evangelho o seu caráter sobrenatural e reduziu a religião ao sentimento natural que se encontra mais ou menos alterado em todas as religiões. A Revolução Francesa propagou por toda parte estas ideias. Na mesma época, Kant sustenta que a razão especulativa não pode provar a existência de Deus. Fichte e Hegel ensinam que Deus não existe fora e acima da humanidade; surge em nós e por nós e não é outra coisa senão o próprio progresso da humanidade, como se este, de tempos em tempos, não fosse acompanhado de um terrível retrocesso para a barbárie.

Liberalismo pretende ocupar, entre o Cristianismo e estes erros monstruosos, uma posição eclética e não chega a conclusão alguma válida para a ação. Vê-se logo substituído pelo radicalismo na negação, depois, pelo socialismo e, finalmente, pelo comunismo materialista e ateu, como previa Donoso Cortès (1).

Este comunismo representa a negação de Deus, da família, da propriedade, da pátria e conduz a uma servidão universal, graças a mais terrível das ditaduras. A descida é acelerada com a queda dos graves.

***

Só há um caminho para voltar a subir: a verdadeira santidade. Mas é preciso encará-la de uma maneira realista. A santidade, como demonstra Santo Tomás (2), tem dois caracteres essenciais: a ausência de toda mancha, isto é, ausência de todo pecado, e uma firmíssima união com Deus.

Esta santidade atinge sua perfeição no céu, mas começa na terra. Manifesta-se concretamente, sobre as quais queremos insistir aqui. Realmente, há três grandes deveres para com Deus: conhecê-Lo, amá-Lo e servi-Lo. Cumpri-los é ganhar a vida eterna. Há almas que tem, sobretudo, por missão, amar a Deus e fazer com que ele seja muito amado; são as almas de vontade forte, que recebem graças de amor ardente. Há outras que tem por missão dá-Lo a conhecer; nelas predomina claramente a inteligência e recebem, sobretudo, graças de luz. Finalmente, há almas que tem por missão, sobretudo, servir a Deus mediante a fidelidade ao dever cotidiano. É o caso da maioria dos bons cristão, que empregam a memória e a atividade prática para serem fiéis ao dever de cada dia.

Estas três formas de santidade parecem estar representadas em três apóstolos privilegiados: São Pedro, São João e São Tiago.

***

As almas em que predomina a vontade recebem bastante cedo certas graças de amor ardente. Perguntam a si mesmas: Que devo fazer por Deus? Que obra empreenderei eu para sua glória? Sentem o desejo de sofre, de se mortificar, para provarem a Deus seu amor, para repararem as ofensas que Ele sofre, para salvarem os pecadores; e é secundariamente que elas se aplicam a melhor conhecerem a Deus.

A este grupo pertencem o profeta Elias, tão notável pelo seu zelo; São Pedro, tão profundamente dedicado a Jesus que, por humildade e por amor, quis ser crucificado de cabeça para baixo; os grandes mártires, Santo Inácio de Antioquia e São Lourenço. Mais próximos de nós, o seráfico São Francisco de Assis e Santa Clara. Mais tarde São Carlos Borromeu, São Vicente de Paula, a transbordar de caridade para com o próximo, Santa Margarida Maria Alacoque e o Santo Cura d’Ars.

O perigo dessas almas reside na energia de sua vontade, que pode degenerar em rigorismo, tenacidade, obstinação; nas menos fervorosas, o defeito dominante será um zelo pouco esclarecido, pouco paciente e pouco suave; por vezes, dedicar-se-ão demasiado às obras ativas em detrimento da oração.

As humilhações que o Senhor lhes envia tendem, sobretudo, a abrandá-las, a quebrar, por vezes, a sua vontade, quando ela se torna muito rígida, para se tornar inteiramente dócil à inspiração do Espírito Santo e para que o seu zelo ardente seja cada vez mais humilde, esclarecido, paciente e suave. Aí têm elas a encosta que vai dar no cume da perfeição.

***

As almas em que predomina a inteligência têm outras encostas a subir. Recebem, muito cedo, certas graças de luz, que as leva à contemplação, e a grandes vistas de conjunto, apanágio da sabedoria. Só através da razão o seu amor aumenta. Sentem menos que as precedentes a necessidade de agir, ou de reparar. Mas, se são fiéis, atingirão o amor heroico para com Deus, que as anima.

A este grupo pertencem os grandes Doutores, Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, São Francisco de Sales, que lamentava a sua lentidão em seguir as luzes que tinha recebido.

O perigo destas almas é contentarem-se com estas luzes e não conformarem suficientemente com elas a sua conduta. Ao passo que a sua inteligência é muito esclarecida, falta à sua vontade certo ardor.

Estas almas sofrem, sobretudo com o erro, com as falsas correntes que extraviam a inteligência. As provações purificam-se e, quando as suportam com resignação, atingem um grande amor a Deus. Uma alma luminosa, fiel, estará mais unida a Deus que uma alma ardente, porém infiel.

***

Finalmente, encontram-se almas em que a atividade predominante é a memória e a atividade prática. Têm, sobretudo por missão servir a Deus mediante a fidelidade ao dever cotidiano. Pertence a este numero a maioria das almas cristãs. A memória leva-as a evocar fatos particulares, são impressionadas por uma faceta da vida de um santo, por uma palavra da liturgia; a inspiração divina torna-as atentas aos diversos meios de perfeição. Se forem fieis, podem elevar-se, como as precedentes, aos mais altos graus de perfeição.

A este grupo de almas parece pertencer o apóstolo São Tiago, os grandes pastores da Igreja primitiva, inteiramente dedicados ao martírio e à direção da sua diocese; e, modernamente, Santo Inácio, atento aos meios mais práticos de santificação e desejoso de considerar os homens tais como são e não apenas tais como deveriam ser; Santo Afonso de Ligório, totalmente preocupado com a moral e com o apostolado prático, cuja necessidade se fazia sentir tanto para lutar contra o jansenismo e contra a incredulidade.

O perigo para estas almas estará em ligarem-se demasiado às boas obras em si mesmas, mas que só indiretamente conduzem a Deus. Algumas delas insistiram na austeridade, outra na devoção, outras, nos seus trabalhos habituais, outras, ainda, na recitação infindável de fórmulas. Talvez venha a encontra como inimigos a minucia e os escrúpulos, que tornarão mais demorado o acesso à contemplação a que o Senhor as chama e prejudicará a intimidade da sua união com Ele. Atêm-se a métodos e a meios que lhe serviram num determinado momento, mas que mais tarde as afastam da contemplação simples e amorosa de Deus.

As provações destas almas encontram-se, sobretudo, na prática da caridade fraterna e no apostolado; sofrerão muito com os defeitos do próximo, mas, se são fieis, no meio de todas estas dificuldades, acabarão por alcançar uma união íntima com Nosso Senhor.

Eis as três principais formas de santidade, correspondentes aos nossos três grandes deveres para com Deus: conhece-Lo, amá-Lo e servi-Lo.

Jesus mostrou-nos a excelência destas três formas de santidade na sua vida oculta, na sua vida apostólica e na sua vida dolorosa.

Na sua vida oculta, na solidão de Nazaré, na sua casa de carpinteiro, ele foi o exemplo da fidelidade ao dever cotidiano, mediante a prática de atos aparentemente sem valor, mas apreciáveis pelo amor que as inspira e até de um valor infinito.

Na sua vida apostólica aparece como a Luz do mundo: “O que me segue não anda nas trevas, mas terá a luz da vida”(Jo VIII, 12). Não é que Ele acredite no que ensina sobre a vida eterna e sobre os meios para alcançá-la; vê-o imediatamente na essência divina (3). Funda a Igreja e confia-a a São Pedro. Diz a seus apóstolos: “Vós sois a luz do mundo” (Mt V, 14) e envia-os a ensinar todos os povos, e levar-lhes o batismo, a absolvição, a eucaristia (Mt XVI, 18, 19; XVIII, 19). E volta a insistir em tudo isso após a ressurreição (Mt XXVIII, 19).

Na sua vida dolorosa, Jesus manifesta-nos todo o ardor do seu amor para com o Pai e para conosco. Este amor leva-o a morrer por nós na Cruz, para reparar a ofensa feita a Deus e para salvar as almas.

Uma vez que Jesus possui eminentemente estas três formas de santidade, domina todos os perigos que nelas encontram outras almas. Possui todo o ímpeto do amor, sem rigidez nem tenacidade. Nunca seu amor foi mais ardente nem manifestou maior suavidade que na Cruz: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”.

Jesus goza da contemplação mais luminosa e mais elevada, mas não se perde nesta contemplação, não se mostra alheio, fora do mundo como um santo em êxtase. Jesus está acima do êxtase e, sem deixar de contemplar o Pai e de estar intimamente unido a Ele, entretém-se com os apóstolos acerca dos próprios pormenores da vida apostólica.

Finalmente, se Jesus está atento às menores coisas que dizem respeito ao serviço de Deus, não corre o perigo de parar muito tempo nelas, perdendo de vista as coisas maiores. Não deixam de ver tudo em Deus, as coisas do tempo e as da eternidade.

A alma santa de Jesus aparece maior quando se compara com os maiores santos, da mesma maneira que a luz branca é superior às sete cores do arco-íris que dela procedem. Guardadas as devidas proporções, deve observar-se o mesmo a respeito da santidade eminente de Maria Santíssima, Mãe de Deus e cheia de graça. Aí temos os mediadores que Deus nos concedeu por causa de nossa fraqueza. Deixemo-nos conduzir humildemente por eles e eles nos conduzirão infalivelmente à vida da eternidade. A vida da graça é já a vida eterna começada, inchoatio quaedam vitae aeterne.


Notas:

  (1)       – Cfr. Oeuvres de Donoso Cortès, tradução francesa, Paris, 2a. ed. t. II, p. 272 e segs. O principio gerador dos mais graves erros dos nossos dias, carta de trinta páginas escrita em 1862, para ser apresentada a Pio IX. – Discursos sobre a situação geral da Europa, ibid., t. I, p. 399 § segs. Item, t. III, p. 279 e segs.
  (2)       II, II, q. 81, a. 8.
  (3)       Cfr. Santo Tomás, III, q. 9, a. 2; q. 10.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

PECADOS DE IGNORÂNCIA, DE DEBILIDADE E DE MALÍCIA




Padre Garrigou-Lagrange
Les Trois Ages de la Vie Interieur

PECADOS DE IGNORÂNCIA

Com relação à vontade, a ignorância pode ser antecedente, conseguinte ou concomitante. A ignorância antecedente é aquela que não é de nenhuma forma voluntária e se chama “moralmente invencível” Por exemplo: crendo atirar contra um leão, em uma espessa selva, um caçador mata um homem, cuja a presença não podia suspeitar. Neste caso não há pecado voluntário, senão unicamente material.

A ignorância conseguinte é aquela que é voluntária, ao menos indiretamente, pela negligência que existiu em inteirar-se do que podia e deveria saber; se chama ignorância vencível, porque teria sido possível livrar-se dela; assim é causa de pecado formal, indiretamente voluntário. Por exemplo: um estudante de medicina, depois de vários anos de muito vagabundar e estudar pouco, por influência ou casualidade recebe seu diploma de doutor; como ignora quase tudo pertinente à arte da medicina, um dia acontece que acelera a morte de um enfermo, em vez de curá-lo. Não há, neste caso, pecado diretamente voluntário, porém indiretamente e que pode ser grave, já que é possível chegar ao homicídio por imprudência ou grave negligencia.

A ignorância concomitante é aquela que não é voluntária, porém de tal forma acompanha o pecado, que mesmo que se não existisse se pecaria do mesmo modo. É o caso, por exemplo, de um homem vingativo que deseja matar seu inimigo, e um dia o mata sem saber, crendo ter matado uma cabra na espessura do bosque; caso que manifestamente se difere dos dois anteriores.

Se segue daí que a ignorância involuntária ou invencível não é pecado; mas a voluntária e vencível o é, e mais ou menos grave segundo a gravidade das obrigações às que se falta. Tal ignorância não livra do pecado, porque houve negligência; unicamente diminui a culpabilidade. A ignorância involuntária ou invencível, em contrapartida, escusa totalmente do pecado, suprime a culpabilidade.

A concomitante não livra do pecado, porque mesmo se não existisse, se cometeria o mesmo pecado.

A ignorância invencível se designa com o nome de “boa fé”; para que realmente se possa chamar invencível ou involuntária, é preciso que moralmente não seja possível livrar-se dela. Não é possível tal ignorância enquanto aos mais fundamentais preceitos da lei natural: “se deve fazer o bem e evitar o mal”; “não faça aos outros o que não quer que te façam”; “não matarás”; “não roubarás”; “adorarás a um só Deus”. Mesmo que não seja pela ordem do mundo, pela vista do céu estrelado e o conjunto da criação, a mente humana possui, ao menos, a probabilidade da existência de Deus, ordenador e legislador supremo; e quando o homem chega a essa probabilidade, está na obrigação estrita de ir mais adiante nessa investigação; do contrário já não se mantém na boa fé verdadeira, ou ignorância involuntária ou invencível. O mesmo se pode dizer de um protestante que chega a convicção de que provavelmente o catolicismo é a verdadeira religião; tem obrigação de informar-se com seriedade e pedir a luz a Deus Nosso Senhor; do contrário, como disse Santo Afonso, comete pecado contra a fé, ao negar-se empregar os meios necessários para chegar a ela.

Com frequência as pessoas piedosas não consideram suficientemente os pecados de ignorância que muitas vezes cometem, por não considerar, como poderiam e como seria sua obrigação, os deveres religiosos ou os deveres de estado; ou também os direitos e qualidades dos demais; superiores, iguais ou inferiores com quem tem que tratar. Porque somos responsáveis, não somente dos atos desordenados que realizamos, mas também das omissões do bem que poderíamos ter feito se tivéssemos verdadeiro zelo pela glória de Deus e pela salvação das almas. Uma das causas dos males atuais da sociedade está no esquecimento daquelas palavras do Evangelho: “Os pobres são evangelizados”, e na indiferença dos que, possuindo coisas supérfluas, não se preocupam com os que nada têm.

PECADOS DE DEBILIDADE

Chama-se pecado por debilidade ou fraqueza o que provém de uma violenta paixão que arrasta a vontade ao consentimento. Assim se diz no Salmo VI, 3: “Miserere mei, Domine, quaniam infirmus sum: Tende piedade de mim, Senhor, porque sou fraco.” A alma espiritual é débil, com efeito, quando sua vontade cede à violência dos movimentos da sensibilidade. Perde assim a retidão do juízo prático e da eleição voluntária ou de eleição, seja por medo, ira ou qualquer outra má inclinação. Pedro, durante a Paixão, renegou cheio de medo, três vezes a Nosso Senhor.

Quando, por efeito de uma viva emoção ou paixão, nos sentimos inclinados a um objeto qualquer, logo julga a inteligência que tal objeto nos convém, e a vontade dá com facilidade seu consentimento, desprezando a lei divina(1).

Mas temos que distinguir aqui a paixão chamada antecedente, que precede o consentimento da vontade, e a conseguinte, que a segue. A paixão antecedente diminui a culpabilidade, porque diminui igualmente a liberdade do juízo e da livre eleição; isto se acha especialmente nas pessoas muito impressionáveis. Pelo contrário, a paixão conseguinte, ou voluntária não diminui a gravidade do pecado, antes a aumenta; ou melhor, é uma prova que o pecado é muito voluntário, posto que é a mesma vontade que que suscita esse desordenado movimento da paixão, como quando alguém se encoleriza para fazer ver sua má vontade(2). De igual forma uma boa paixão conseguinte, como a Santa cólera de Nosso Senhor, ao expulsar do Templo os vendedores, aumenta o mérito, uma má paixão conseguinte aumenta o pecado.

O pecado da fraqueza é o da vontade que cede ao impulso de uma paixão antecedente; sua gravidade diminui, porém isso não quer dizer que nunca possa chegar a ser mortal. O é certamente quando a matéria é grave e vai unida a um conhecimento e consentimento pleno; tal seria o caso do homicida que comete o crime sob impulso da ira(3).

É possível resistir, sobretudo no princípio, aos movimentos desordenados das paixões; se se não lhe opõe essa resistência, nem se reza como é devido, para obter o auxílio divino, a paixão já não é só antecedente, mas se faz também voluntária.

O pecado de fraqueza, mesmo sendo mortal, é mais digno de perdão que qualquer outro; porém “digno de perdão” de nenhuma maneira quer dizer “venial” no sentido corrente desta palavra(4).

Mesmo as pessoas piedosas devem ter muita atenção neste assunto, porque podem produzir-se nelas movimentos de inveja não reprimidos que poderia fazer cair em graves faltas; por exemplo, em juízos temerários, palavras e atos externos que foram causa de graves divisões, contrárias ao mesmo tempo à justiça e à caridade.

Seria grave erro pensar que só o pecado de malícia pode chegar a ser mortal, porque só ele contraria com a suficiente advertência e o pleno consentimento  requeridos, junto com a matéria grave, para constituir o pecado que dá morte a alma e a faz merecedora da morte eterna. Semelhante erro seria o resultado de uma profunda deformação da consciência, e ainda contribuiria a aumentá-la. Recordemos que no princípio é fácil resistir aos desordenados movimentos da paixão e que devemos opor-lhes resistência e orar para faze-lo assim, segundo as palavras de Santo Agostinho recordadas pelo Concílio de Trento: “Deus nunca nos manda o impossível, porém, ao impor-nos um preceito, nos ordena que façamos o que podemos e que peçamos o que não podemos” (5).

PECADOS DE MALÍCIA

Diferente do pecado de ignorância e de fraqueza, o de malícia é aquele que se escolhe o mal intencionalmente; os latinos diziam “de indústria”, ou seja, com intenção, expressamente, sem ignorância e mesmo sem paixão antecedente. Muitas vezes este pecado é premeditado.

Isso não quer dizer que se queira o mal pelo mal; porque o objeto da vontade é o bem e não pode querer o mal senão sob aspecto de um bem aparente.

Mas o que peca por malícia, com conhecimento de causa e por má vontade, deseja intencionalmente um mal espiritual (por exemplo, a perda da caridade ou da divina amizade) em troca de um bem temporal. É claro que um pecado assim entendido difere, em gravidade, do de ignorância e do de fraqueza ou debilidade.

Não se deve concluir daí que todo pecado de malícia seja pecado contra o Espírito Santo. Este, que é um dos pecados mais graves de malícia, tem lugar quando, por menosprezo se rechaça precisamente aquilo que nos salvaria ou que nos livraria do mal; por exemplo; quando se combate a verdade religiosa conhecida (impugnatio Veritatis agnitae), ou quando por inveja, deliberadamente, se entristece com as graças e do adiantamento espiritual do próximo.

Frequentemente o pecado de malícia procede de algum vício gerado por múltiplas faltas; mas também pode existir faltando este vício; assim o primeiro pecado do Demônio foi um pecado de malícia, porém não habitual, senão de malícia atual, de má vontade, de uma embriaguez de orgulho.

É evidente que o pecado de malícia é mais grave que os de ignorância e de fraqueza, mesmo que estes sejam mortais. Por isso, mesmo as leis humanas castigam com mais rigor o homicídio premeditado que o cometido por paixão.

A principal gravidade dos pecados de malícia provém de que não mais voluntários que os outros; de que geralmente procedem de um vício gerado por faltas reiteradas, e de que, ao comete-los, se antepõe um bem temporal à divina amizade, sem a desculpa de ignorância ou de violenta paixão.

Nestas questões alguém pode se enganar de duas maneiras distintas. Alguns se inclinariam a pensar que só o pecado de malícia pode ser mortal; estes não compreendem bem a gravidade de certos pecados de ignorância voluntária ou de que fraqueza, nos que, não obstante, existe matéria grave, suficiente advertência e consentimento pleno.

Outros, pelo contrário, não compreendem suficientemente a gravidade de certos pecados de malícia cometidos com toda a frieza. Com afetada moderação e gesto de benevolência e tolerância, os que assim combatem a verdadeira religião e tiram aos pequenos o pão da verdade divina podem pecar mais gravemente que o que blasfema e o que mata no ardor da paixão.

A falta é tanto mais grave quanto é cometida com mais vontade e mais conhecimento, e quando procede de mais desordenado amor de si mesmo, que às vezes chega até o desprezo de Deus.

Pelo contrário, um ato virtuoso é mais ou menos meritório segundo seja mais voluntário e livre e que seja inspirado pelo maior amor de Deus e do próximo, amor que pode chegar até o santo desprezo de si mesmo, como disse Santo Agostinho.

Assim acontece que o que ora com demasiado apego ao consolos sensíveis, merece menos que quem persevera na oração sem esses consolos, em contínua e profunda aridez; mas ao sair dessa prova, seu mérito não desmerece se sua oração procede de uma caridade igual, que agora influi felizmente em sua sensibilidade. Ademais, um ato interior de puro amor tem mais valor aos olhos de Deus que uma multidão de obras exteriores inspiradas em menor caridade fervorosa.

Em todas estas questões, quer se trate do bem quer do mal, preciso é, sobretudo, atender ao elemento que radica em nossas faculdades superiores: inteligência e vontade, ou seja, o ato de vontade realizado com pleno conhecimento de causa. E desde este ponto de vista, assim como um ato mal plenamente deliberado e consentido, como um pacto formal com o Demônio, tem formidáveis consequências, do mesmo modo um ato bom, tal como a oblação de si mesmo a Deus, realizada de maneira plenamente deliberada, consentida e frequentemente renovada, pode ter ainda maiores consequências na ordem do bem; porque o Espírito Santo é infinitamente mais poderoso que o espírito do mal, e pode mais na ordem de nossa santificação, que aquele para nossa perdição. É muito conveniente pensar nestas coisas diante da gravidade de certos acontecimentos atuais. Como o amor de Jesus Cristo, ao morrer por nós na Cruz, foi mais agradável a Deus que o tudo o que poderia desagradá-Lo todos os pecados juntos, assim o Salvador é mais poderoso para salvar-nos, que o inimigo do em para perder-nos. Neste sentido disse Jesus: “Não temais aquele que matam o corpo, porém não podem matar a alma; antes, temei ao que pode perder o corpo e a alma no inferno”. (Mt X, 28). O inimigo do bem não pode, ao menos que nós o abramos as portas de nosso coração, penetrar no intimo de nossas vontades, enquanto que Deus está dentro de nós mais intimamente que nós mesmos, e pode levar-nos com força e suavidade aos mais profundos e elevados atos livres, aqueles atos que são como uma “prévia” da vida eterna.




______________________________________________________________________
1 – Santo Tomás, I, II, q. 58, a. 5; q. 57, a. 5, ad 3; q 77, a. 2.
2 – Santo Tomás, I, II, q. 77, a. 6.
3 – I, II, q. 77, a. 8.
4 – Ibid., ad I.
5 – Conc. Trid., ses. VI, cap. II (Denz., 804), ex Santo Agostinho,  De Natura et gratia, C. XLII, n° 50.